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Umbra, é a parte mais escura da sombra.
Uma exposição que faz apologia à escuridão é logo, na primeira instância, contra a absoluta visibilidade que, com o iluminismo, passou de projeto espiritual para projeto filosófico-científico, e é sobretudo hoje, um projeto político- económico que implica uma voragem para tudo compreender (estabelecer um princípio e um fim), posteriormente manusear, extrair, explorar e mercantilizar[1]. O elogio da sombra impõe-se enquanto critica à claridade em Arte – do cubo branco, das luzes brancas, dos textos que nos explicam como devemos apreender a obra – umbilicalmente ligada ao sistema de mercantilização e cognição vigente.
A minha relação com a sombra é constante e em permanente movimento (a única constante é a mudança!). Escrevo de memória de forma a editar criativamente aquilo que li, vi e me vai transformando, porque aquilo que lemos ou experienciamos não nos permite voltar para trás. Li uma vez um texto do Sérgio Solmi[2] que argumentava que uma ideia clara é uma ideia morta que de nada nos serve. Uma ideia necessita de zonas de sombra para continuar viva, e a poesia e a arte são duas das atividades humanas que fornecem zonas de sombra às ideias, às coisas, e sobretudo possibilitam novas relações entre coisas (humanas e não humanas). A sombra contém por isso todas as qualidades do seu objeto – da sua proveniência (Jung).
O “Elogio da Sombra” de Junichirō Tanizaki é um tratado da cultura japonesa, desde as sombras no teatro Nō até à arquitetura tradicional. Recordo-me dos Tokonoma, os espaços embutidos em salas de recepção das casas tradicionais onde são exibidos itens para apreciação artística[3]. Tanizaki refere a sombra presente nestes gabinetes e, como esta afecta a relação com as pinturas de paisagem que iam mudando consoante as estações do ano.
Esta ideia de projetar-me no escuro – habituar-me à luz e descobrir os pequenos detalhes da pintura que a associam à estação do ano – interessa-me e associo-a agora, com grande leveza, ao medo da morte e do escuro que me tomaram em criança e, na sua relação íntima com o desenho. Relaciono-a igualmente ao exercício de projeção aos grotescos – massas informes da escultura barroca nas igrejas que recebiam no escuro as projeções dos crentes, e na vegetação pintada na penumbra das paisagens românticas onde os pintores podiam exercer maior liberdade, organizando os seus impulsos interiores na tela.
Em 2018, construímos[4] uma Gruta na cave da Galeria Quadrado Azul em Lisboa. A Gruta era o lugar escuro para novas narrativas, onde se interlaçavam harmoniosamente os atos do fazer e experienciar. No escuro, e com as protuberâncias e volumes da gruta, andávamos com cuidado e procurávamos com uma lanterna as intervenções feitas nas paredes orgânicas e rugosas. A Gruta funcionava como arco no tempo criando relações entre a arte paleolítica e os seus ecos em questões ecológicas, de género, colectivos e expansão da consciência humanas.
Em anos recentes associei o meu trabalho a várias pesquisas desenvolvidas sobre o fundo do mar, tomando este como espaço mental com implicações transversais do ponto de vista ético, político e artístico. O fundo do mar é uma zona desconhecida no planeta, atraindo autores e intelectuais para desenvolver um trabalho de transformação de possibilidades de relação, entre entre humanos e não humanos mas, também entre nós e as coisas (ideias, obras, etc). Para exemplificar, traduzo aqui uma frase de Vincianne Despret:“[…] há explicações que acabam por multiplicar os mundos e celebrar a emergência de um número infinito de modos de existência e outras que procuram impor uma ordem, reconduzindo-os a alguns princípios básicos”.[5] Os textos de Despret foram apelidados como fabulações científicas por Bruno Latour, porque às suas capacidades de etóloga e filósofa de ciências, adiciona uma capacidade especulativa para ficcionar possibilidades futuras.
Se o passado é uma narrativa ficcionada, podemos especular possibilidades para o futuro, contra a colonização do futuro que conseguimos entender pelos empréstimos das instituições bancárias, ou nos filmes apocalípticos e pós-apocalípticos que afunilam o futuro e nos impedem de viver plenamente no presente[6] e, de forma mais abrangente, pelo condicionamento através de algoritmos e firewalls[7]. Para “aprender a viver com os problemas” como Donna Haraway[8] tão bem desenvolve, “devemos pensar, e pensar é preciso!” Mas sobretudo, é preciso saber com que materiais e ideias devemos pensar. As minhas ferramentas são elásticas e “fracas”. Uma ideia fraca é, politicamente, uma ideia onde os meios determinarão os fins e a poesia e alguma arte são os melhores exemplos disso. Ao contrário, uma ideia forte torna todos os meios transparentes, em função de uma forma apolínea – uma ideia forte que utiliza qualquer meio para atingir o fim.
Aqui os exemplos são todos as formas políticas que resultaram em prejuízo étnico-racial, guerra, holocausto, genocídio, e que idealmente englobaria a natureza. A política humana não engloba a natureza, porque a subjuga à condição mais baixa de existência, que é definida por uma economia de extração. O capitalismo segue rumo ao infinito enquanto as capacidades naturais são finitas e apenas se renovam lentamente comparativamente com a velocidade do capital.
O apelo para o fundo do mar prende-se com essa procura de uma outra liberdade para além de sistemas vigentes de controlo. Do ponto de vista da sombra ou do lugar escuro, aquilo que me entusiasma no fundo do mar são esses novos lugares e novas formas de vida – e com estas, novas possibilidades de relação e inter-relação. Nessa altura, pintei a partir de imagens capturadas por robots ROV que utilizam quatro fontes de luz para filmar no escuro total fui. Estas fontes de luz ofereceram novas possibilidades para a pintura porque há uma história da luz associada à história da pintura, com o fogo a projetar sombras nas paredes das grutas, a luz celestial da pintura clássica, a chegada dos humanos à Lua – celebrada na pintura “July16,1969” de On Kawara, a luz fluorescente e permanente nos ateliers e galerias de arte, as obras de Dan Flavin, etc.
Em Umbra, os desenhos na parede resultam de colagens que misturam a luz das pinturas de Grão Vasco, do écran do meu computador que as manipula, a luz sobre uma pedra no meio do pinhal, e as suas sombras, claro. Esta confluência é uma heterogeneidade[9] de planos que porventura não serão comunicantes[10] mas que eu associo aqui. A real materialidade da arte é essa inter-relação[11], entre coisas que nunca foram colocadas em relação ou relacionadas de uma determinada maneira (sensibilidade, ponto de vista…) o que nos fornece matéria sensível e matéria intelectual.
As sombras das cerâmicas e as sombras dos desenhos são coisas diferentes. Os objetos podem ser interpretados como negativos ou invólucros de objetos. A representação negativa vem diretamente de Willem de Kooning quando afirma que para se pintar uma cadeira é necessário pintar o espaço debaixo da cadeira. Depois penso nos artefactos nos gabinetes de curiosidades e nos seus invólucros, que acabam por vezes ser a memória de um objeto saqueado.
Unem-se os desenhos e as cerâmicas no desejo de seduzir o visitante, a projetar sobre as obras, acontecimentos sociais, políticos ou experiências pessoais. Eu prefiro um olhar emancipatório que transgride a padronização interpretativa de folhas de sala e textos de parede e acredito piamente que desta forma, a obra se territorializa no quotidiano e apenas assim o devir-obra se realiza, uma e outra vez.
Hugo Canoilas
[1] “The law of value in capitalism is a law of Cheap Nature (Moore 2015:53). It is noteworthy that Moore includes ‘labour- power’ whitin ‘Cheap Nature”. Em “Marx and the Anthropocene ” de Kohei Saito. Ed. Cambridge University Press, UK, 2022. [2] Solmi, Sergio; „MEDITAÇÕES SOBRE O ESCORPIÃO e outras prosas”, Trad. Ana Cláudia Santos. Ed. Barco Bêbado, 2022 com desenhos de Fernando Mesquita.
[3] O termo „apreciação artística“ provém da definicao da função dos Tokonoma segundo a página do wikipedia“
[4] A Gruta foi um projeto coletivo desenvolvido entre 2018 com Filipe Feijão, Vasco Costa, Ana Vaz, Katharina Höglinger, Silvia das Fadas, musa paradisíaca, Rubenne Palma ramos e Jorge das Neves, Titania Seidl, Sophie Nys, Jannis Varelas, Daniela Grabosch , Alpine Huus (Elise Lammer, Lucien Monot e Julie Monot) e George Frauenschuh.
5] in Vinciane Despret, “Living as a Bird”, tr. Helen Morrison, Cambridge: Polity Press, 2021, p. 6.
[6] A ideia de Presentismo, segundo Bernard Aspe em “Mais tarde é agora”, Revista Imprópria n.2, Ed. UNIPOP, Lisboa, 2012
[7] Um firewall é um sistema de segurança de rede de computadores que restringe o tráfego da Internet para, de ou em uma rede privada. Esse software ou unidade de hardware-software dedicada funciona bloqueando ou permitindo pacotes de dados seletivamente.
[8] Haraway, Donna “Staying with the Trouble- Making Kin in the Chthulucene” Ed. Duke Press, 2016, US.
[9] A minha ideia de heterogeneidade provem de vários textos e conferências ou conversas privadas com José Miranda Justo [10] Em ecologiautilizam o termo alemão “Umwelt” que significa “ambiente” ou “meio envolvente” para defender como os organismos de uma determinada espécie experienciam o mundo, que depende do que os seus órgãos sensoriais e sistemas perceptivos conseguem detetar e interpretar. Nas teorias semióticas de Jakob von Uexküll e Thomas Sebeok, considera-se que são os “fundamentos biológicos que estão no centro do estudo da comunicação e da significação no animal humano [e não humano]”.
[11] Ideia organizada por José Bragança de Miranda no texto para o catálogo da exposição “Memento” de Richard Tuttle, Ed Fundação de Serralves, 2002, PT.